Por Bolívar Lamounier -
Portal Exame Outro dia eu me vi numa situação deveras estranha. Participando de uma mesa-redonda numa de nossas universidades, me vi forçado a defender o marxismo. E a defendê-lo – imaginem ! - contra interlocutores de esquerda.
Nunca me vira num papel tão dissonante com o que penso, falo e escrevo.
Meus leitores mais pacientes e bondosos, que sempre estão por aqui, devem estar espantados com este meu intróito. Eu nunca tive dúvida de que um país regido politicamente pela teoria marxista só poderia dar em totalitarismo. E nunca deu mesmo.
No que se relaciona com a economia, eu até cheguei por algum tempo a acreditar na baboseira da planificação, da eficiência possivelmente maior de um sistema totalmente controlado de cima para baixo, do avanço tecnológico acelerado que daí adviria e coisa e tal.
Peço até licença para relatar um fato de meus tempos de estudante. Tendo ingressado na pós-graduação da Universidade da Califórnia, em Los Angeles, fui parar num curso de relações internacionais.
Tratava-se justamente de uma comparação entre EUA e URSS, e uma das tarefas do curso era analisar criticamente um livro de uma lista indicada pelo professor. Peguei um de Isaac Deutscher, um historiador muito apreciado no Brasil.
Crítico da URSS – até por ter escrito uma biografia de Trotsky, o líder exilado e assassinado em conseqüência da ascensão de Stálin -, Deutscher defendia justamente as teses que eu estava acostumado a ouvir. Essa eu tiro de letra, pensei de mim para comigo.
O progresso tecnológico soviético – dizia Deustcher – é monumental. Para a URSS deixar para trás os Estados Unidos, é só uma questão de tempo .
Defendi vigorosamente o livro . E me ferrei. Para meu azar, o professor era um especialista no assunto. Por pouco não me reprova. Disse para eu me enfurnar na biblioteca e estudar.
Foi o que fiz, creio até que em excesso. Não vou encompridar este texto rememorando o colapso da URSS e de seus satélites no Leste. Mas preciso mencionar as notícias que estão chegando de Cuba.
O governo cubano, como o leitor se recorda, está para fazer um ajuste fiscal de meter medo. Anunciou um corte de 500 mil empregados públicos, num total de 4 milhões e qualquer coisa.
Num país com um setor privado pífio, todo cheio de dedos no que toca a investimento estrangeiro, um ajuste dessa ordem implica um quadro de dificuldades terríveis. E a opção de não ajustar inexiste : o paraíso socialista foi à falência, it’s as simple as that .
Outro dia eu contei aqui que o comandante Raúl Castro havia deflagrado um programa de privatização. De fato, eu lera em algum lugar que os salões de barbeiro e de beleza já haviam sido privatizados.
Pois não é que eu me enganara ? Num artigo publicado esta semana no Washington Post – e eu não me julgo mais bem informado que o tradicional WP – , George F. Will informou que tais salões ainda vão ser privatizados, como parte da anunciada reforma econômica. Mas só aqueles que têm até três cadeiras. Os que têm quatro ou mais, ficam para depois.
E a mesa-redonda em que me vi obrigado a defender o marxismo ? O que tem a ver com isso ? Vou tentar explicar.
Eu acredito já ter aqui me referido ao PT como uma salada das mais esquisitas . Na política social, um inferno de boas intenções, sempre vazadas num tom moralista exaltado .
Na política, puro maniqueísmo : nós somos o bem, eles são o mal - e, com a ascensão de Lula à presidência, uma tolerância escandalosa com uma espécie de cleptopopulismo.
Conversa vai, conversa vem, chegamos a 2009. Lá está Lula, o alquimista, fabricando sua candidata.
Para poder ungi-la com os óleos de sua colossal popularidade , ele bolou uma estratégia de comparar ponto a ponto as realizações de seu governo com as do governo Fernando Henrique.
Por qualquer indicador de desempenho – dizia Lula, para gáudio da “companheirada” – , meu governo fez muito, mas muito mais que o de FHC.
Me permitam outro parêntesis. Eu creio já ter confessado aqui algumas de minhas manias. Uma delas é que sempre fui um compulsivo guardador de papéis. Me atualizei, é lógico . Tudo o que me chama a atenção, eu agora guardo no computador.
Guardei, por exemplo, um artigo do jornalista Gustavo Patu – “Petistas mistificam dados e ignoram passado” – publicado na Folha de S. Paulo no dia 18 de fevereiro. No subtítulo, Patu já vai na jugular : “Lula e Dilma dão ênfase a quantidades, em detrimento da pertinência e da relevância”.
Patu abre o texto citando um discurso que Lula deve ter repetido umas cem vezes, mas que ainda assim me parece antológico :
“E pasmem, para uma coisa que é importante: eu, torneiro mecânico, já sou o presidente da República que mais fez universidades neste país”, anunciou o presidente Lula, na semana passada, em Teófilo Otoni (MG), como já havia feito, só neste ano, em Bacabeira (MA), São Leopoldo (RS), Araçuaí (MG), no Fórum Social de Porto Alegre e em Brasília.
Lula, o semeador de universidades ! Quanta bobagem ele conseguiu dizer em apenas duas linhas.
Na mesma batida, lá foi Dilma Rousseff, então ministra da Casa Civil : “Até 2003 tinham sido construídas no Brasil 140 escolas técnicas profissionalizantes, e só no governo Lula já foram feitas 140, com a previsão de construção de mais 74″.
Não vou aborrecer o leitor discutindo esses números . Assim como fez Patu, o que quero por em relevo é a indigência do próprio raciocínio.
E ele o faz de forma, digamos assim, impiedosa : “Se não se trata de uma mentira em busca de ser verdade à custa de tanta repetição, é um exemplo sintomático do tipo de comparação de feitos que o PT parece querer imprimir à campanha presidencial da ministra Dilma Rousseff , [dando] ênfase a quantidades, em detrimento da pertinência, [recorrendo] a números de consistência ou relevância duvidosa e, principalmente, [ignorando] as contribuições do processo histórico”.
Realmente, querendo transformar tolices em sabedoria, “à custa de tanta repetição” , Lula e Dilma parecem ter acreditado no que diziam : em suas bravatas estatísticas e no arremedo de raciocínio que as interliga.
Foi por isso que os meus interlocutores petistas na tal mesa-redonda me fizeram sentir saudades do marxismo. Em seus trinta anos de existência, desde o começo, o PT sempre demonstrou uma constrangedora incapacidade de compreender processos históricos. Outro dia eu tento explicar como foi que isso aconteceu.
Mas este é um mérito que os mais ferrenhos opositores de Karl Marx jamais lhe negaram : a idéia de que mudanças importantes na economia, na ordem social ou na política não acontecem da noite para o dia.
Sem superar os grandes obstáculos de um dado momento, não há como passar ao seguinte. Saindo da posição A, não se chega à posição C sem passar pela B. O antes vem antes do depois.
Num país à beira da desorganização econômica como estava o Brasil até 1994, quantas unidades de quais tolices Lula teria “feito” ? Teria saído por aí a semear universidades, ou iria primeiro arregalar os olhos quando informado de que a inflação anualizada embicava para os 5.000 % ?
“Natura non facit saltus” – a natureza não dá saltos -, como o próprio Marx gostava de dizer.
Trinta anos é muito tempo, mas a perda é reparável. Com honestidade intelectual e um pouco de estudo, não deve ser tão difícil recuperar a percepção da história.
Bolívar Lamounier O sociólogo e cientista político Bolívar Lamounier, sócio-diretor da Augurium Consultoria, é autor de alguns dos mais conhecidos estudos de ciência política no país. Seu livro mais recente,
A Classe Média Brasileira:
ambições, valores e projetos de sociedade, escrito com Amaury de Souza, foi lançado este ano pela Editora Campus.